Descaso e tropeços na Rodoviária

Texto e fotos: Uirá Lourenço

O principal terminal de transporte do Distrito Federal localiza-se no início da Esplanada dos Ministérios, no coração de Brasília, a apenas 2 km da Praça dos Três Poderes. Apesar da localização privilegiada, o descaso é monumental. As escadas rolantes e os elevadores que dão acesso entre as plataformas inferior e superior não funcionam há muitos anos. O drama perpassa diferentes governos e aflige especialmente pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida.

E o que dizer da cratera avantajada na saída da Rodoviária rumo à catedral, aos ministérios e aos outros pontos turísticos? Se sair ileso da cratera (no período chuvoso, além do risco de queda, ainda há chance de banho de lama), o pedestre ainda precisa transpor as calçadas sem rampas e piso tátil. Cadeirantes são obrigados a seguir pela pista, junto com os carros e ônibus.

Cadeirantes na pista em razão da falta de rampas na saída da Rodoviária em 2012 (à esquerda) e 2019 (à direita).

Ao longo dos anos até se observam obras na rodoviária. A iluminação melhorou e pisos táteis foram instalados. Mas graves problemas persistem. Além do velho drama das escadas rolantes e elevadores sem funcionar, as longas filas e o desconforto aos passageiros são nítidos.

Rodoviária do Plano Piloto: longa espera em pé e escadas rolantes sem funcionar.

As queixas quanto às péssimas condições são frequentes nos jornais e nas redes sociais. Uma das reclamações (6/2/2020) se refere à falta de bancos para sentar. Na resposta, a Administração da Rodoviária informou que “a alocação de assentos na Rodoviária foi restringida no projeto de revitalização. A formatação é para que os usuários esperem, no máximo, oito minutos na fila para embarcar”. Basta parar e observar o movimento, ou conversar com as pessoas nas filas, para constatar que o tempo de espera é bem superior ao informado. Aliás, a ausência de informação é outra deficiência histórica. Houve mudanças ao longo do tempo, com troca de painéis eletrônicos próximos aos pontos de embarque, mas até hoje não se tem informação sobre horários em tempo real, apesar de os ônibus no DF terem GPS.   

Queixas frequentes de quem passa pela Rodoviária: desconforto, atrasos e insegurança. Clique para conferir as reclamações publicadas nos jornais em 2019 e 2020.

No início deste ano, as linhas de ônibus do Entorno (cidades de Goiás, incluindo Valparaíso e Luziânia) foram transferidas do prédio do Touring para a plataforma ‘D’ da rodoviária. E o que se viu foi o caos generalizado: congestionamentos de ônibus no acesso ao terminal e filas enormes na volta para casa (confira o vídeo aqui). Além do desconforto e do longo trajeto, a tarifa atormenta os passageiros do Entorno: com o aumento aprovado pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), a partir de 23 de fevereiro a tarifa pode chegar a R$15,25 no trajeto entre Planaltina (Goiás) e Brasília*. No total, 18 linhas tiveram reajuste.

Passam pela Rodoviária do Plano Piloto cerca de 700 mil pessoas diariamente. Além de linhas de ônibus para todo o DF e Entorno, a rodoviária abriga a estação central do metrô, posto de serviços Na Hora (com guichês de vários órgãos públicos) e comércio diverso, incluindo lanchonetes, farmácias e quitanda. O descaso com os passageiros, lojistas e consumidores também se revela nos banheiros sujos e sem manutenção, revestimento do teto destruído e goteiras que se formam no período de chuva. No dia 13/2/2020 a Rede Urbanidade, criada com o apoio do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), fez vistoria na rodoviária com a presença de estudiosos da mobilidade, do promotor Dênio Augusto e de peritos do órgão.

Falta de manutenção na rodoviária: estrutura deteriorada e goteiras.

– Plataforma Superior

Na plataforma superior da rodoviária estão importantes centros de comércio e lazer: Conic, Conjunto Nacional e Teatro Nacional. O movimento de pessoas a pé é intenso, mas boa parte do espaço é ocupada por estacionamento. Logo na saída do terminal as pessoas se espremem na calçada estreita e deteriorada. Ao lado, uma área ocupada por muitos carros, sem cobrança pelo estacionamento.

A calçada mais larga entre o Conjunto Nacional e o Conic tem piso em boas condições, mas costuma estar ocupada por vendedores ambulantes. Os obstáculos e a ausência de piso tátil dificultam o trajeto das pessoas com deficiência. O vídeo gravado com três cegos revela as dificuldades existentes. (clique para assistir)

Quem precisa esperar o ônibus na plataforma superior passa sufoco. O ponto de ônibus do Conjunto Nacional não tem abrigo e costuma ter carros parados em frente. No outro lado, voltado para a Esplanada dos Ministérios, o ponto de ônibus tem abrigo, mas é insuficiente para a demanda de passageiros.

Pontos de ônibus sem abrigo e lotados na plataforma superior.

Segundo dados de Gabriella Cascelli, cujo trabalho de conclusão de curso avaliou a plataforma superior**, 60% de todo o espaço da plataforma é destinado aos carros. Jardins, comércio e pedestres distribuem o restante do espaço. Para os ciclistas, a área destinada é nula. O estudo destaca que Lucio Costa descreveu, em 1957, a parte superior como “grande plataforma liberta do tráfego que não se destine ao estacionamento ali”.     

Em 2019, parte da plataforma superior ficou interditada para os carros e ficou ainda mais evidente a desproporção no uso do espaço urbano, a demanda das pessoas por espaços de circulação e permanência. Na área ocupada por estacionamento pedestres e vendedores ambulantes passaram a usar o espaço. Outra mudança nítida com a interdição: o silêncio e a tranquilidade sem o ronco dos motores. Dava até para ouvir os pássaros.

Plataforma liberada para as pessoas na interdição em 2019. Situação ‘normal’, com carros, em 2020.

– Integração intermodal

Uma medida importante para melhorar a mobilidade é incentivar a integração dos modos ativos aos coletivos de transporte, com boa infraestrutura para o uso de bicicletas, patins e patinetes. Bicicletários e ciclovias são elementos importantes para viabilizar a integração e incentivar que as pessoas deixem o carro em casa e optem por outros meios de transporte.

Na rodoviária é nítido o descaso com a integração. O bicicletário que outrora existiu (sem cobertura e sem controle de acesso) está desativado e bloqueado. O jeito é prender a bicicletas em postes ou lixeiras.  Vale lembrar que existem duas leis específicas que obrigam a instalação de bicicletários: Leis Distritais 4.423/2009 e 4.800/2012.

Improviso ao estacionar na rodoviária.

Outro problema é a insegurança ao pedalar pela rodoviária. As ciclofaixas pintadas nos dois lados (norte e sul) não tiveram manutenção e, atualmente, estão ocupadas por táxis, veículos de carga e ônibus. No início deste ano, foram demarcadas vagas para ônibus na parte norte e, assim, se eliminou de vez a ciclofaixa. Ou seja, as ciclovias próximas, na Esplanada dos Ministérios e no Eixo Monumental, não se interligam. Também faltam caminhos seguros até a Asa Sul e Asa Norte.  

Ciclistas sem caminho seguro nas partes norte e sul da rodoviária.

A possibilidade de integração também foi reduzida com a retirada das bicicletas e dos patinetes da Yellow. O sistema de aluguel sem estação funcionava desde o início de 2019 e foi encerrado em janeiro deste ano. Brasília e outras 13 cidades ficaram sem o serviço. As duas estações fixas de bicicletas compartilhadas próximas à rodoviária funcionam, mas nem sempre têm bicicletas disponíveis.       

– Propostas humanizadoras

No coração de Brasília, a rodoviária poderia (e deveria) ser um local bem diferente. Uma referência em acessibilidade e mobilidade para outras capitais, com espaços bem conservados e atrativos. Com base nos princípios da mobilidade moderna – voltada para as pessoas e não para os carros –, pode-se pensar em muitas melhorias.

Para melhorar a acessibilidade e diminuir a dependência das escadas rolantes e elevadores, por que não construir rampa de ligação entre as plataformas da rodoviária? Com declividade adequada e desenho arrojado, certamente iria ajudar muito o deslocamento de pedestres e ciclistas. Uma rampa no aeroporto de Confins (MG) serve de inspiração.

Rampa no aeroporto de Confins: exemplo para a rodoviária de Brasília.

Para melhorar a integração entre os modos ativos e coletivos de transporte, a sugestão é instalar ciclovias ou ciclofaixas dentro do terminal, nas partes norte e sul. A infraestrutura ajudaria não só ciclistas, mas também usuários de skate, patinete, patins e monociclo. Para os ciclistas é essencial ter bicicletário coberto e com controle de acesso. Além do bicicletário na rodoviária, é recomendável instalar vagas para ciclistas na plataforma superior, de preferência em área coberta.

Temos bons exemplo a seguir: o maior bicicletário da América Latina fica em Mauá (SP), integrado à estação de trem, possui 2 mil vagas (veja no vídeo). Centros comerciais de Vitória (ES) oferecem vagas gratuitas e cobertas aos ciclistas. Em um dos shoppings, as mais de 200 vagas costumam ficar lotadas (vídeo sobre os bicicletários na Grande Vitória). 

Bicicletário em Mauá (SP) e vagas cobertas para ciclistas em Santiago (Chile).

Seguindo a tendência de pensar a cidade para pessoas, com distribuição justa do espaço, o amplo estacionamento gratuito na plataforma superior se tornaria uma praça com banquinhos, brinquedos infantis e equipamentos de ginástica. O estudo de Gabriella Cascelli apresenta propostas nesse sentido. A pesquisadora destaca que, em 1975, foram construídas as duas praças próximas ao Conjunto Nacional e o Conic, mas “a construção das duas praças não foi sufi­ciente para aumentar significativamente a vivência da plataforma”.

Renovação de espaço na Plataforma Superior. Imagem: Marcelo Andrade e Gabriela Cascelli.

Por fim, medidas para atrair mais pessoas para o transporte coletivo.  Uma proposta é disponibilizar informações em tempo real sobre o horário dos ônibus. Terminais de transporte e pontos de embarque em diversas cidades do país e do exterior informam o horário de chegada.  

Informação em tempo real: rodoviária de Berlim (Alemanha) e ponto de ônibus em Belo Horizonte (MG).

Brasília vai completar 60 anos em abril. Projetada por Lucio Costa, bem que a rodoviária – ou simplesmente ‘rodô’, como é carinhosamente chamada pelo povo – merecia mais atenção das autoridades. Seria um presente e tanto para a população receber um espaço renovado. Em vez de ser conhecida pela sujeira, pelos banheiros quebrados e pelas escadas rolantes que nunca funcionam, a Rodô seria reconhecida pela boa prestação de serviços e pelas possibilidades de lazer e encontro. Seriam inúmeros os benefícios na acessibilidade, mobilidade, qualidade de vida, economia e turismo.

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* Esclarecimento sobre a tarifa das linhas de ônibus do Entorno: a tabela da ANTT divulgada com valor de até R$ 15,25 se refere a eventuais linhas de ônibus executivo. Segundo Wesley Nogueira, secretário-executivo do instituto MDT, “essas tarifas de 10,00, 11,00, 14,00 e até 15,00 são para um possível serviço executivo, caso as operadoras queiram oferecer uma prestação diferenciada, onde todas as pessoas ficariam sentadas e os veículos seriam melhores. As operadoras teriam essa opção de oferta, por isso, há a publicação de tarifas nesses valores pela ANTT junto com as demais que são efetivamente praticadas. Mas te digo que ainda não vi nenhuma explorar esse serviço executivo.”

** O trabalho de conclusão do curso de arquitetura (UnB) foi apresentado por Gabriella Cascelli em 2014 e está disponível em: https://issuu.com/gabrielacascellifarinasso/docs/a_nova_plataforma

ÁLBUM (2007-2020):

Fotos da Rodoviária do Plano Piloto, incluindo o entorno do terminal e a Plataforma Superior, no período de 2007 a 2020.

VÍDEOS:

Rodoviária do Plano Piloto – descaso e inacessibilidade (2019)

O vídeo revela o estado de abandono no principal terminal de transporte do DF.

Enxurrada de Pedestres em Brasília

Uma multidão se desloca todo dia até a rodoviária do Plano Piloto. No final do dia o movimento impressiona.

Plataforma Superior da Rodoviária – fluxo de pedestres

Na plataforma superior boa parte do espaço é ocupada pelos carros. Mas a multidão a pé se espalha por calçadas destruídas e pelo amplo estacionamento. 

Trajeto com cegos na área central de Brasília

Ao caminhar e conversar com três cegos dá para entender a indignação com a inacessibilidade próximo à rodoviária.

Inacessibilidade e queda de pedestre na Esplanada

Flagrante de queda e quase atropelamento causado pela falta de calçadas acessíveis.

TEXTO – De Bike na Rodoviária:

Relato com imagens das condições para os ciclistas ao passar pela rodoviária.

https://brasiliaparapessoas.wordpress.com/2018/04/06/de-bicicleta-na-rodoviaria-do-plano/

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