Jornada peregrina – a pé no Caminho de Cora Coralina

Texto e fotos: Uirá Lourenço

A ideia veio com o convite de um amigo, irmão de laço, Wesley. Ele queria fazer uma caminhada longa e ter tempo de conversa e reflexão. Um trajeto de 300 km a pé por Goiás. Animei de cara, pois precisava pensar na vida e minhas férias começariam no mês seguinte. Comecei a me preparar, pesquisei sobre o caminho de Cora Coralina e os acessórios necessários para a jornada peregrina. O Wesley me indicou um documentário do Richard, que tinha feito o caminho sozinho. Fiquei ainda mais convencido a mergulhar nessa.

Seriam 12 dias andando e refletindo. Meu irmão acabou não podendo ir, mas eu já estava pilhado e decidi seguir jornada solitário. Improvisei um parceiro para as longas horas. Inspirado no filme Náufrago, batizei e separei a bola de tênis Wilson que encontrei na rua poucos dias antes.

Encarei como uma jornada necessária de autoconhecimento e superação física e mental. Há mais de 15 anos, quando a esposa estava grávida do primeiro filho, parti numa aventura de bike. Juntei roupas numa bolsa azul que amarrei no bagageiro e peguei a estrada de Brasília a Vitória onde a Roni morava. Agora surgia a oportunidade de nova aventura, solitário pelas estradas da vida. Resolvi escrever esse relato com fotos para compartilhar a experiência e, quem sabe, ajudar outros peregrinos. Separei em tópicos para facilitar a contação dos causos.

– Preparação para a caminhada

O caminho de Cora Coralina tem 302 km e passa por diferentes cidades e povoados. Pode ser feito a pé ou de bicicleta. Decidi caminhar para apreciar com mais calma. A página oficial do Caminho tem muitas informações, inclusive os trechos entre cidades e os locais de hospedagem. A rota começa em Corumbá e termina em Goiás Velho. Pelo portal pode-se adquirir o passaporte no qual o peregrino carimba os trechos realizados.

Não tive muito tempo de planejamento, cerca de um mês. Como era marinheiro de primeira viagem, tive que providenciar vários itens. Pesquisei sobre os acessórios recomendáveis, comprei uma mochila apropriada (capacidade: 40 + 10L) com barrigueira e ajuste no peitoral e um tênis adequado para trilhas. Após assistir a alguns vídeos, achei melhor comprar tênis, em vez de bota. Outro item importante: bastão de caminhada. Fez muita diferença, especialmente em trechos íngremes.

Itens separados para a jornada.

Para a hidratação comprei um refil de água com mangueira (2L), transportado dentro da mochila, e uma garrafa de 1,2L. Capa de chuva (poncho) já que partiria dia 22/11, em plena estação chuvosa. Decidi levar um facão por questão de sobrevivência no mato e segurança. Um amigo, o Marcos (enfermeiro ciclista), me ajudou muito e montou uma bolsa com itens de primeiros socorros: esparadrapo, gaze, álcool em gel e manta térmica, entre outros. Acrescentei remédio para dor, clorin (purificador de água) e isqueiro.

É bom falar de um item simples, mas fundamental: vaselina. Todo dia, antes da caminhada, lambuzava os pés antes de colocar as meias. Ah.. também sapecava nas partes baixas, entre as coxas e a bunda. Acredite, faz toda a diferença, evita bolhas e assaduras. Só tive uma bolha a jornada inteira e assadura no final do primeiro dia (único dia em que não sapequei vaselina nas partes baixas).  

Levei duas calças próprias para trilhas (com muitos bolsos) e duas camisas de manga longa (com proteção UV), óculos escuros, chapéu, boné e protetor solar. O sol de Goiás não perdoa e adotei a estratégia de madrugar, sair ainda no escuro, para pegar menos horas de sol. Uma boa lanterna de cabeça (modelo utilizado em caverna) é importante.

– Hospitalidade: elas e eles

O mais marcante nessa jornada foram as pessoas, a receptividade, o carinho e o calor humano. Em cada lugar de pouso, pessoas especiais que me recebiam tão bem e contavam muitos causos. Elas foram especiais do início ao fim. Dona Cira, mãezona em Radiolândia; dona Cleusa, simplicidade e acolhimento; dona Lucimar, carinho e refeição (fogão à lenha e doces caseiros); Maysa, receptividade e dicas; dupla em Calcilândia (mãe e filha), hospitalidade; dona Maria José, no final da jornada, com sua alegria contagiante.

Grande hospitalidade: Dona Cleusa (Caxambu), Lucimar e Benedito (Jaraguá).

O carinho e a hospitalidade eram tanto que as anfitriãs acordavam sem reclamar, de madrugada, bem antes de o galo cantar. O café da manhã estava pronto antes das 4h. Até cogitei deixarem um sanduíche e umas frutas separadas na noite anterior para não terem que acordar tão cedo. Mas todas as vezes o cafezinho, o pão de queijo, ovo frito e outros quitutes estavam na mesa.

Os rapazes e senhores também ajudaram e alegraram a jornada. O parceirão Carlos (e sua esposa Cláudia) logo no início, em Cocalzinho; o atencioso sr. Onilavir (e esposa) em São Francisco; Benedito e Jhone em Jaraguá, grande ajuda no transporte e boa conversa; Seu Zé Mário em São Benedito, pelos causos e grande ajuda com o mochilão.

Não poderia deixar de mencionar os que tentaram dar carona. Um senhor bem de idade de moto, outros também de moto, um caminhoneiro e outras pessoas de carro que devem ter sentido pena daquele maluco com um mochilão, um bastão e uma garrafa de água. Anônimos que me dão certeza de que há pessoas boas e dispostas a ajudar.   

Sou peregrino raiz e dispensei carona..hehe. Mas por duas vezes aceitei carona da mochila (mais pesada que o necessário), em Jaraguá e em São Benedito. Foi um alívio encarar a Serra de Jaraguá com pouco peso. Pude aproveitar bem aquela vista maravilhosa no topo.

– Trilha poética

Os versos de Cora Coralina foram um ingrediente especial na jornada. Além da beleza e simplicidade da poesia, a vida da grande poetisa goiana é pura inspiração! Doceira, estudou até a 3ª série, começou a escrever poemas e contos aos 14 anos e só teve seu primeiro livro publicado aos 75 anos. Parei em cada banquinho para ler o poema, descansar e refletir.  

‘A escola passa o saber e a vida nos dá a sabedoria.’ Na minha caminhada ia vivenciando novos rumos em busca de sabedoria, e também de sinais lá do céu. Outro irmão de laço, Léo, me munia de passagens bíblicas diariamente e recomendava estar atento aos sinais, à presença de Deus. Foram muitas reflexões, versos lidos e sinais sentidos nos dias de jornada. Também apreciei belas árvores, frutos e animais do cerrado.   

 O percurso poético é um patrimônio de Goiás. Salvo engano, é a única trilha desse tipo no mundo. Alguns versos me tocaram fundo e servem como mantra: ‘Faz de tua vida mesquinha um poema’. Sim, cada um de nós pode sair da rotina, da zona de conforto, e ser mais leve, produzir algo bom e belo para os outros.

A simplicidade e autenticidade de Cora são comoventes:

Sendo eu mais doméstica do

que intelectual,

não escrevo jamais de forma

consciente e racionada, e sim

impelida por um impulso incontrolável.

Sendo assim, tenho a

Consciência de ser autêntica.

Poderia reproduzir outros versos que li e me encantaram. Mas prefiro deixar o convite para você caminhar e conferir. E ao final visitar a casa de Cora, em Goiás Velho.

– Trechos da Jornada

Fiz o percurso em 12 dias, tempo mínimo sugerido para quem percorre a pé. Passei por todo tipo de terreno: trilhas em mata, estrada de chão, rodovia movimentada, trechos urbanos e povoados pacatos. Cheguei a percorrer mais de 30 km por dia, foram quatro trechos em que superei essa marca. No 7º dia – de Jaraguá a Alvelândia – bati meu recorde e andei 34,43 km.

Trechos de trilha e de estrada de chão.

Em alguns dias caminhei ‘pouco’, só 20 e 21 km. O trajeto mais curto foi no penúltimo dia, entre Calcilândia e a pousada Caminho de Cora (11,55 km). A distância em si é um dos desafios. Para um andarilho com peso nas costas cada quilômetro a mais conta. Minha velocidade média, segundo o aplicativo de trilhas, era de cerca de 4,8 km/h.

O caminho passar por pequenos povoados.

Posso dizer que, além da distância, os fatores cruciais na caminhada foram o mochilão pesado (abastecido de água, levava uns 14 kg nas costas) e o sol. Em dois momentos que pude caminhar sem o mochilão (7º e 10º dia) senti grande alívio, voei no percurso! Certamente, nas próximas missões, irei bem mais leve.

Para driblar o calor adotei a estratégia de madrugar. Às 4h20 já tinha tomado café e estava pronto para a jornada. Acredite, o sol de Goiás não perdoa. Após 10h o ritmo caía por conta da temperatura. Aliás, os trechos com árvores são bem mais amenos. Mas, passando por grandes fazendas e grandes plantações de soja, em boa parte do caminho não dá para contar com a sombra das árvores.

Alívio no caminho: sombra da árvore.

É bom estar preparado para subidas e descidas. Além do trecho de Pirenópolis, é preciso encarar a serra de Caxambu e a de Jaraguá. O tênis próprio para trilhas e o bastão ajudaram muito e, mesmo assim, tomei um capote numa descida íngreme de Caxambu. Felizmente, só o susto, sem lesão.

– Superando medos

Sozinho por longas distâncias tive que encarar meus medos. Cães soltos e nem sempre amistosos, bois e vacas com bezerros. Confesso que no início subi em árvore para deixar a boiada passar (vídeo). Ainda no 1º dia, em Corumbá, me assustei com cachorros na rua. Ao longo da jornada mais bois e cães surgiam. Tive que aprender a lidar, não dava para andar de volta 15 ou 20 km.

Os momentos de abrir e fechar porteira, em que precisava passar por dentro de fazendas, eram os mais tensos. Tive calma e me mantive firme. No dia em que um cão de maior porte veio pra cima, ‘quicando’, me virei, estufei o peito e mostrei quem era o macho alfa! Deu certo, ele continuou latindo, mas recuou.  

Em alguns momentos sinto que tive proteção divina. Cercado por uma manada, na chegada a São Francisco, apareceu o seu Dedé, montado a cavalo e com seu cachorro. Pedi ajuda para atravessar a boiada e ele prontamente atendeu. Em outro momento de tensão, com uns sete cães ruidosos no caminho, o peregrino corredor (comento sobre ele adiante) repentinamente apareceu e me ajudou a enfrentar as feras (vídeo das feras caninas).

Seu Dedé e o resgate no meio da boiada.

No final da jornada eu estava bem mais confiante e fiz amizade com cães, gatos e bois. Percebi que os bois, em geral, se assustam e não oferecem risco.

  – Atrativos

Sou observador e amante da natureza. Contemplei a beleza do cerrado e, nas áreas de mata, ia bem devagar. Ouvi relatos ao longo do caminho sobre tamanduás, lobos-guarás, veados e até onça. A cada som na mata eu ficava atento.

Vi muitas aves: papagaios, curicacas, seriemas, araras, pica-paus e belos araçaris. Também vi saguis, macacos (com filhote na carcunda) e quatis. Mas não foi dessa vez que vi tamanduá e lobo-guará. O André viu dois lobos-guarás atravessando a pista no Parque dos Pireneus; eu não dei essa sorte. Outra presença ilustre foram as corujas. Nos trechos monótonos com plantações de soja a perder de vista, elas se enfileiravam elegantemente na cerca e me seguiam com o olhar.

A bela vista do alto da Serra de Jaraguá foi o ponto alto da viagem, literalmente. Comecei a subida de madrugada e cheguei para conferir o nascer do sol. Uma vista impressionante: de um lado, a lua cheia; do outro, o sol começava a raiar. De repente, as nuvens começaram a subir e vi o que parecia um tsunami nebuloso. Ainda fui conferir a rampa de asa delta (descobri que é um dos melhores lugares de voo livre) antes de descer e pegar um toró.

Ponto alto da viagem – Serra de Jaraguá.

No primeiro dia pude conhecer o Salto de Corumbá, que até então só tinha visto da estrada. Parei por algumas horas para tomar banho de piscina e de cachoeira. Após andar a manhã inteira, relaxei numa piscina de hidromassagem. Um pouco de glamour no início da jornada!

Uma boa surpresa foi cruzar os trilhos de trem nas proximidades de Jaraguá. Para um amante da mobilidade, parada obrigatória. Fiquei um tempo ali sonhando com o dia em que teremos a retomada dos trens para interligar o país e transportar carga e passageiros. Vi muitos bois margeando a ferrovia e dei sorte de ouvir o trem passar (estava vazio, mas deu certa nostalgia).

Trem no caminho.

Eu diria que o maior atrativo foi a hospitalidade goiana. Fui muito bem recebido em todos os lugares por que passei. Nas casas em que parei, o cafezinho, biscoito de queijo, bolo e uma boa prosa. Às vezes eu parava pra perguntar o caminho, outras vezes me paravam, curiosos para saber sobre a jornada. Nas vezes em que me perdi e estava sem internet, fui socorrido por desconhecidos que liberaram wi-fi. E assim segui a jornada até o fim, movido a pequi!

– Parceiro inesperado

Ainda na noite anterior ao início da jornada, em Corumbá, conheci o André. Ao chegar à pousada, o rapaz da recepção comentou que outro hóspede, também de Brasília, ia fazer o Caminho de Cora. Conversamos um pouco e trocamos contato. Inicialmente pensei: ‘legal, vai ser o primeiro peregrino que encontrarei no percurso, dentre alguns outros.’

Ao longo da jornada percebi que éramos só nós dois nesse período quente e, teoricamente, chuvoso. A maioria dos peregrinos faz o percurso nos meses menos quentes. O André ia fazer o caminho correndo. Sim, sempre tem alguém mais doido! Acabamos pousando juntos em muitos locais e acostumamos a sair cedo, antes de o sol raiar.

Foi bacana ter alguém com quem conversar e trocar dicas. Ele estava com bem menos peso na mochila e ia num ritmo forte. Eu seguia no ritmo devagar e sempre. A única queixa é que ele não gosta de pequi e, ao chegar antes às pousadas, rejeitava a oferta de pequi na refeição.

Por pouco não fui prejudicado. Chegava e anunciava minha adoração por essa maravilhosa e cheirosa iguaria do cerrado. Sempre fui prontamente atendido até mesmo quando cheguei ao restaurante Matuto, em Itaguari, bem tarde para o padrão goiano (13h30). Fui brindado com um banquete e pequi da chácara da dona. Que delícia, deixei o prato pré-lavado!

– Alguns causos

Encontrei muita gente no caminho e escutei muitas histórias, algumas boas, outras tristes. No 2º dia, na chegada a Pirenópolis, estava na ponte que atravessa o rio das Almas olhando a paisagem e lembrando do boia-cross que tinha feito com a família. Eis que, de repente, surge um senhor empurrando a bicicleta, corpo bem curvado, e atravessando lentamente. Não resisti e puxei conversa. Seu Juvenal, de 81 anos, comentou que trabalha na pedreira (é carregador de pedras!) e vai todo dia de bicicleta, com sol ou chuva. Pedi para fazer foto e gravar vídeo, ficou registrado esse belo exemplo de vitalidade. 

Seu Juvenal – exemplo de vitalidade.

Outra boa história foi a da dona Cira, de Radiolândia. Nem tinha comentado sobre minha paixão por bicicleta, estávamos tomando um cafezinho e papeando quando ela começou a contar sobre uma atividade na cidade para promover o Caminho de Cora. Dona Cira queria envolver as escolas e aproveitar para promover o uso da bicicleta entre os alunos, articulou com diretores, secretário de educação, pais e professores. O resultado foi um rolê de bike bem animado na cidade, com mais de 60 moleques empolgados e com a presença do prefeito. Gravei uma conversa bem descontraída com essa figura iluminada e inspiradora, que ainda comentou sobre o projeto de plantio de mudas no Caminho de Cora.

Dona Cira, de Radiolândia.

Em São Benedito, mais um causo interessante. O seu Zé Mário, do Pouso Vitória, ofereceu para dar carona e adiantar parte do trajeto no dia seguinte. Ele faz transporte escolar e sairia cedo para buscar as crianças. Como bom peregrino raiz, recusei a oferta, mas depois pensei na possibilidade de ele levar o mochilão e eu poder caminhar parte do percurso leve, apenas com água e outros itens essenciais. Por conta de não ter ponto de apoio – algum comércio ou casa de conhecido –, parecia inviável inicialmente.

Com seu Zé Mário e Maysa (pai e filha), em São Benedito.

Mas seu Zé Mário não aquietou enquanto não achou um jeito de ajudar. À tarde, quando foi buscar as crianças na van, mapeou o percurso e marcou um lugar onde ele poderia deixar o mochilão no dia seguinte. Fez foto e gravou vídeo para me mostrar. A ideia era ensacar a mochila e deixá-la por cima de uma plantação, atrás da cerca onde tinha uma placa de fazenda. Dito e feito, no dia seguinte ele levou meu mochilão bem cedo e eu pude caminhar sem peso nas costas por uns 11 km. A indicação do local (perto da porteira e dos ’mizinho’) foi precisa e o mochilão estava lá, me esperando no meio da plantação. Mais um bom exemplo de como o povo do Goiás é hospitaleiro e prestativo.

Outra boa história envolvendo meu mochilão foi em Jaraguá. Na pousada Quintal de Roça toda a família me ajudou. Na chegada à cidade fui resgatado pela Mayara (filha), recebido e bem acolhido pela dona Lucimar, transportado no dia seguinte pelo Benedito (marido) até o ponto de retomada do caminho para subir a serra. E teve a participação especial do Jhone (filho), que tinha ficado de levar de moto o mochilão no final da descida da serra. Como peguei chuva forte e precisei reduzir bem o ritmo ao descer, atrasei para chegar e nos desencontramos. Quando consegui sinal de internet (wi-fi liberado por um senhor de uma casa ao longo da estrada), o Jhone já tinha pedido ajuda para resgatar a ‘carcaça’, pois achou que eu tivesse me acidentado. A dona Lucimar e a dona Cira tinham ficado apreensivas e tentaram me ligar várias vezes. Acabei encontrando o Jhone alguns quilômetros adiante, que chegou sorridente com a mochila, apesar de todo o perrengue que o atraso causou.

O trilheiro Jhone ajudou com o transporte do mochilão.

Também ouvi histórias tristes. Como a da senhora viúva que foi expulsa de casa, no dia seguinte ao velório, por parentes do marido. A tristeza havia deixado marcas na mente e na pele daquela mulher sofrida e angustiada. Ainda ouvi o caso de mãe e filha que ficaram sozinhas cuidando da casa quando o homem resolveu juntar os trapos e morar com outra. Tempos depois ele voltou pra casa como se nada tivesse acontecido.

– Final da Jornada 

No último dia teve um pouco de tudo: travessia de córrego e trecho de mata na saída da pousada Caminho de Cora, ruínas de Ouro Fino, momento de tensão ao cruzar com um cão de grande porte (parecia um rottweiler) solto e a parte final por rodovia movimentada até chegar a Goiás Velho. Teve tempo nublado, chuva e sol forte. Foi emocionante chegar à cidadezinha charmosa, que merecidamente é patrimônio da humanidade. Aproveitei para ficar por três dias para descansar e passear com a gata, que foi ao meu encontro.

Em Goiás Velho, descanso e certificação da jornada.

Cheguei num domingo (3/12), final da manhã, e o Museu de Cora estava fechado. Mais um motivo para esticar a estadia. Fomos visitar a Casa de Cora Coralina na 3ª-feira e me encantei com sua história de vida. Na visita guiada vimos os cômodos, a cozinha, o quarto com os pertences e ouvimos curiosidades. Só não pode tirar fotos na parte de dentro.

Aproveitei para pegar os carimbos que faltavam no passaporte e o certificado de peregrino. Pra completar e amenizar o calor, um sorvete na praça do coreto.

– Dicas e aprendizado

Essa missão peregrina foi incrível. Acho que foi a primeira de outras que ainda virão. Tive tempo de sobra para refletir sobre a vida, pensar em projetos, me conhecer melhor, me superar física e mentalmente e enfrentar meus medos.

A bola Wilson, que seria minha companheira de viagem, viu o tamanho da encrenca e desistiu no primeiro dia. Arrumei para a foto no início do percurso – a bola equilibrada no mochilão – e, ao me preparar para sair, ela deve ter caído. Só notei que Wilson não estava comigo uns 10 km adiante e abortei a missão de resgate.

Com o tempo fui enfrentando a solidão (ou melhor, solitude) com bom humor. Cantava para me alegrar, orava para pedir proteção, pedia licença ao passar pela porteira (apesar de o dono nunca estar por perto) e cumprimentava os bichos – dona Coruja, seu Boi e os atrevidos Quero-Queros, que às vezes davam rasante na cabeça.

Confesso que foi mais cansativo do que imaginava. Estou acostumado a caminhar, correr e pedalar. Mas não com peso nas costas. A cada noite dormida, a cada refeição caprichada (com pequi) e a cada nascer do sol eu me renovava.

Refeições caprichadas para motivar o peregrino.

Foco e pensamento positivo são fundamentais. No trecho que passa por Pirenópolis eu viajei nos pensamentos e acabei passando reto. Só notei o desvio da rota bem depois ao consultar o wikiloc no celular. Era uma parte bem íngreme e tive que encarar uns 5 km a mais de subidas e descidas. Driblei o ímpeto de murmurar e encarei como um treino extra para os muitos dias que ainda restavam.

Marcação no aplicativo: desvio de rota.

A rota é, em geral, bem sinalizada, mas é bom ter o aplicativo com gps e a rota oficial baixada para seguir em segurança. Como eu saí muitas vezes no escuro, antes de amanhecer, nem sempre a sinalização estava bem visível.

Tive bode apenas duas vezes, aquela baixa de ânimo em que a pergunta tenta grudar na mente: ‘o que eu vim fazer aqui?’. Percebi que foram dias em que eu não tinha dormido ou me alimentado bem. Respirei fundo, tirei a mochila das costas, tomei água e comi paçoquinha e frutas.

Já escrevi demais. Minha intenção foi compartilhar um pouco dessa jornada, os trajetos, as belezas, as dicas, os desafios e alguns causos. Além das fotos, gravei vídeos, alguns já publicados no meu canal. Espero ter tempo de editar e publicar mais cenas dessa experiência que foi a mais intensa e profunda vivenciada por mim. Recomendo aos que procuram aventura e momentos de reflexão.

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Agradeço as pessoas que me incentivaram e ajudaram a viabilizar essa jornada: Wesley (que semeou a ideia); Ronieli (que liberou o passe e aguentou o tranco em casa); Marcos (que montou o kit de primeiros socorros); Léo (mensagens bíblicas diárias); Assis, da associação Caminho de Cora (dicas valiosas sobre o percurso); minha mãe, Paulinha, Claudio, Herivelto e outros que se interessaram e pretendem vivenciar a experiência peregrina. Será que na próxima irei acompanhado? 

Marquei o percurso, cada trecho, no aplicativo de trilhas (wikiloc) e inseri algumas fotos. Dá para ver os detalhes no perfil (link).

Sou amante da natureza e da fotografia. Então, acabei fazendo uns cliques no trajeto. Montei um álbum com imagens do belo Caminho de Cora. Clique para conferir!

Ao longo do caminho gravei vídeos. Além da conversa com o seu Juvenal e a dona Cira, gravei momentos curiosos: quando subi na árvore para escapar da boiada e quando enfrentamos cães raivosos. Criei playlist (link para conferir) no canal e ainda pretendo editar mais vídeos.

8 comentários sobre “Jornada peregrina – a pé no Caminho de Cora Coralina

  1. Que bacana Uirá! Parabéns pela jornada e pelo relato. Sou testemunha de boa parte desta aventura. Foi um prazer dividir estes dias com você, mesmo que parcialmente. Admiro sua agenda de promover uma mobilidade mais sustentável e saudável. Você é um exemplo prático do que acredita. Abraços peregrinos. André.

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    • Bão demais, André. Acompanhando você correndo deu até vontade de me aventurar num ritmo mais forte. Não sei se os 300 km, mas talvez uns 100 km eu aguente ; )
      Quem sabe nos encontramos em outra missão peregrina futuramente. Abração e muita luz no seu caminho!

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  2. Além de tudo, um ótimo cronista! Parabéns por compartilhar sua vivência e ajudar outros doidinhos kkkkk.. Agradeço a Deus pela proteção do peregrino nesses caminhos ‘ousados’ e pela experiência maravilhosa! Que as reflexões tenham trazido respostas claras. Muito bom te acompanhar, mesmo que de longe, e sentir sua felicidade. De forma autêntica, vc testou seus limites físicos e emocionais. Eu nunca duvidei da sua capacidade. Parabéns! Beijoss…

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  3. Que baita experiência, Uirá! Teu relato humano e generoso comprova isso. Conseguimos viajar juntos nos teus causos e, certamente, muitos já estão começando a preparação física para te acompanhar na próxima. Cora deve estar orgulhosa do teu texto e coragem. Abraço e obrigado

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    • Bacana, Marcos. Obrigado pela mensagem! Espero que outras pessoas se aventurem em missão peregrina. Estou animado para seguir outras trilhas, explorar outras regiões. Vamos nessa ; )

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