Boulevard de Taguatinga: do coração para as avenidas

Texto e fotos: Júlio Carneiro

Introdução

Este texto nasce em meio às multifacetadas percepções que representou a vistoria[1] com enfoque na mobilidade ativa, realizada do boulevard de Taguatinga pela Rede Urbanidade[2], vinculada à 1ª Promotoria de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística – Prourb, em 21/11. A última etapa da vistoria incluiu um trecho da Avenida Comercial e da Avenida das Palmeiras que representa o contorno imediato do boulevard e a ligação do centro metropolitano com os eixos que configuram uma cidade predominantemente retilínea.

  1. Mais do que corredores viários, logradouros e marcos identitários

Essa pequena alça que se percorreu em volta da quadra C7 permitiu lançar o olhar sobre uma amostra representativa da situação ao longo dessas avenidas que, mais do que corredores viários, representam marcos referenciais e caminhos de encontros sobre os quais a cidade se desenvolveu. É necessária uma percepção geográfica e histórica da região para entender o desequilíbrio entre as ameaças, sempre crescentes e que já deixaram marcas permanentes, e as oportunidades, que em um passado próximo representou a harmonia da cidade que reunia um comércio próspero de lojas de rua e áreas residenciais com aparência interiorana.

Hoje, essas duas realidades estão seriamente ameaçadas pelas decisões nas décadas de 70 e 80 de fazer de Taguatinga uma passagem de veículos. Se de início, isso foi visto como prosperidade por muitas pessoas e sobretudo pelo comércio local, hoje, há um nítido esgotamento do vigor comunitário, cultural e mesmo comercial da região. O mal estar e a indefinição pela falta de um projeto de futuro e de clareza sobre os melhores caminhos a tomar dominam as conversas sobre a cidade.

Apesar de ter predominado o caráter utilitário da cidade para automóveis, com pouca preocupação em manter as características que a tornaram agradável e próspera, a situação exige uma revisão e tem agora uma excelente oportunidade com a construção do túnel central, que desobriga a utilização do centro como corredor de carros, e do boulevard, que cria um padrão estético em relação às calçadas niveladas e sem obstáculos.

  1. O que revelou essa visão fotográfica das duas avenidas?

Os pontos críticos observados na vistoria mostraram a falta de cuidados na escala humana, sobretudo com as calçadas e os logradouros em geral. Predomina a pouca atenção à acessibilidade e à caminhabilidade, o que contrasta com as exigências da população e da própria atividade econômica. Também ficou evidenciada a falta de percepção sobre os investimentos realizados ao longo de 3 décadas e o aproveitamento dessas oportunidades.

Desde a construção do metrô com a previsão da estação na Praça do Relógio, antevia-se um aumento na população transitando na área. No entanto, houve negligência em relação à caminhabilidade, ao desenvolvimento urbano e à atividade econômica dentro do raio de influência da estação. Ao invés de facilitar o trânsito de pedestres, as calçadas tornaram-se pouco atrativas, carentes de conforto e com problemas de segurança. Em vez de impulsionar o desenvolvimento, pareceu-se afastar dele.

  1. Avenida Comercial: eixo estruturante norte-sul

A Avenida Comercial foi o principal eixo estruturante da cidade e é ainda fundamental para a caracterização da cidade como polo empresarial. Taguatinga tem registradas cerca de 10 mil empresas nos setores de comércio, indústria e serviços, gerando  cerca de 70 mil empregos, atraindo trabalhadores, estudantes e a população em geral de um extenso raio geográfico da macrorregião oeste do DF e da região circunvizinha de Goiás. E esse dinamismo muito se deveu ao comércio de rua, isto é, lojas abertas para a rua.

Fig 1: Início da Av. Comercial norte, logo após a Praça do Relógio.

3.1 Avenida Comercial na encruzilhada

O pouco investimento que o principal eixo comercial do Distrito Federal, também identificado como um “shopping horizontal”, tem recebido pode ser explicado, mas não justificado. Por parte do GDF, além do atraso de obras essenciais, por exemplo, as obras de drenagem das águas pluviais, há falta de estudos e projetos a respeito do que de fato será a Avenida Comercial: se receberá parte da linha oeste do BRT ou se manterá sua vocação vinculada ao comércio diversificado. Essa indefinição atinge de um lado os empresários, que geralmente investem pouco em suas propriedades ou na reformulação do modelo de negócio, e do outro a comunidade que vê um acúmulo de problemas e pouca priorização na solução dos mesmos.

Fig. 2: Av. Comercial norte (C7), com recente ampliação de vagas de estacionamento e eliminação de calçadas (em frente ao muro amarelo)

Fig. 3: Av. Comercial (C7) e Av. das Palmeiras: Cruzamento de elevado risco de acidentes, sem acessibilidade, inclusive para os deficientes visuais que frequentam a Biblioteca Braille

3.2 O binário que se perdeu pelo caminho

As últimas intervenções na Av. Comercial foram em 2016, com a implantação do sentido único nas avenidas Comercial e Samdu e a redução da velocidade máxima de 60 para 50 km/hora.

A implantação do sentido único nas Avenidas Comercial e Samdu, com a pretensão de ser um binário, foi apoiada por muitos proprietários de veículos, mas se tornou pouco confortável e segura para os pedestres e usuários do transporte coletivo. Essas pessoas que formam importante parcela dos clientes dos serviços e comércio da cidade precisam vencer as 33 travessas em declive, com cerca de 400 metros que separam as duas avenidas, sem nenhuma calçada acessível.

O projeto foi implantado de forma controversa[3] e o impacto esperado no cenário da requalificação urbana, no revigoramento da atividade econômica e na melhoria da qualidade de vida ficou a dever, assim como as promessas de melhor aproveitamento da via para a mobilidade ativa, calçadas acessíveis e ciclovias. No entanto, passados quase 8 anos de sua implantação, os pedestres continuam disputando as ruas com os veículos. A precária  iluminação, a pouca atenção às faixas de pedestre e a arborização cada dia reduzida contribuem para a falta de conforto, de segurança e de padrão estético.

Por outro lado, foi avaliada como positiva a redução da velocidade de trânsito na Avenida Comercial. O efeito foi imediato, pelo menos nas informações comparativas com 2017: o número de acidentes com vítimas foi reduzido em 48% e não houve mortes[4].

3.3 sugestões de impacto para revitalizar o comércio e a comunidade

As intervenções sugeridas exigem pouco recurso, são relativamente simples, são basicamente requalificar as calçadas; a dificuldade maior está na decisão política e na motivação da comunidade local. É uma região rica de oportunidades, pois se trata de um eixo comercial tradicional gerador de renda e de emprego, onde diariamente transitam milhares de pessoas.

  1. Rever e aprimorar o projeto “Binário” com base no feedback da comunidade, visando melhorar as condições de conforto e segurança para pedestres e ciclistas. Criar espaços atraentes ao longo das avenidas, seguindo o padrão de referência, como na W3 Sul.
  2. Implementar um projeto de Parceria Público-Privada e Participativa (PPPP) para  requalificar as avenidas Comercial e Samdu, melhorar as fachadas das lojas, padronizar as calçadas, instalar áreas verdes e mobiliário urbano moderno.
  3. Assegurar a participação ativa da comunidade e empresários locais para o alinhamento com as necessidades específicas da região, como por exemplo: manutenção das ruas limpas e de promoção de atividades culturais e de lazer.
  4. Implantar o circuito comercial e cultural que conecta o norte e o sul da cidade, ligando o boulevard com outros centros comerciais e culturais. Essa revitalização pode atrair mais visitantes e estimular o comércio local.
  5. Garantir acessibilidade, conforto e segurança nas 33 travessas entre as Avenidas Comercial e Samdu. Incluir faixas de pedestres adequadas, arborização, iluminação e manutenção regular das calçadas.
  6. Desenvolver e implantar projeto de iluminação focado no pedestre, associado à revitalização das fachadas e à redução da poluição visual e do excesso de fios, seguindo se possível o padrão desejado de aterramento.
  7. .Assegurar a redução da velocidade máxima dos veículos com a instalação de mais monitores de velocidade ao longo das vias. Avaliar a possibilidade de reduzir a velocidade máxima para 40 km/h nas avenidas Comercial e Samdu.
  1. Avenida das Palmeiras: transversalidade entre o comércio e as residências

A Avenida das Palmeiras é um marco referencial de Taguatinga pelo seu amplo canteiro central e a peculiar disposição das palmeiras imperiais. O espaçoso canteiro central, além de ser importante na caracterização do espaço urbano, proporciona certa segurança e conforto para o volumoso fluxo de pedestres e veículos.

Essa avenida está inteiramente situada na zona de impacto (700m) de uma das estações de metrô mais movimentadas que se conecta a várias linhas de transporte público, inclusive o BRT. Além disso, está posicionada entre a praça do Relógio, local de chegada e de passagem, e a Praça do DI, local de cultura e de vida comunitária, compondo uma região rica em comércio, serviços, instituições de ensino, assistência social, cartórios etc.

Fig.4: Av das Palmeiras: O canteiro central é um dos marcos referenciais da cidade

4.1 Sempre lembrada e sempre abandonada

Desde a construção do metrô em 1992[5] até as intervenções mais recentes, como a construção do túnel em 2020, a Avenida das Palmeiras tem sido adaptada para suportar o intenso fluxo de veículos durante as obras, calculado em mais de 100 mil veículos. No entanto, após as várias intervenções que se sucederam, a restauração desse espaço público foi sempre secundarizada.

Além disso, a falta de cuidados na dimensão humana e a prevalência do interesse privado sobre o público tem contribuído para descaracterizar esse  espaço que, mais do que uma via de trânsito, é um logradouro que facilita o fluxo de pedestres do centro intermodal da Praça do Relógio e garante a transição harmoniosa entre a área residencial e o centro comercial.

Fig. 5: Av. Palmeiras (C7): Sem espaço para o pedestre, quadra ocupada por um centro educacional com muitas crianças e uma placa de trânsito pouco pedagógica.

4.2 A precarização de um espaço rico em oportunidades

A falta de estacionamento na região central de Taguatinga e a construção de edifícios residenciais sem a previsão de vagas de estacionamento gera um enorme impacto na destinação irregular de vagas de estacionamento em detrimento da caminhabilidade. Em 2010, a Administração Regional abriu sem estudos qualificados cerca de 70 vagas entre as palmeiras, descaracterizando o canteiro central que passou a ser um espaço hostil ao pedestre.

Além do carro, as oficinas de carro, restaurantes e bares e outros, utilizam o espaço público em benefício do privado, sem nenhuma resistência dos órgãos governamentais de trânsito e de fiscalização de posturas. Recentemente, tapumes invadem o já precário espaço do pedestre, eliminando totalmente a acessibilidade de pessoas com deficiência, uma região que representa um importante espaço de confluência metropolitana que maltrata seus usuários pela pouca visão do GDF e de alguns empresários que insistem em degradá-la.

Fig. 6: Av. das Palmeiras: Canteiro central na contramão da mobilidade ativa e do desenvolvimento urbano econômico.

4.3 Sugestões para resgatar a caminhabilidade e a acessibilidade

Recentemente, um novo documento foi protocolado na Administração de Taguatinga, destacando a necessidade de ampliar o diálogo e garantir a segurança aos pedestres e a acessibilidade, sobretudo às crianças, aos idosos e às pessoas com deficiência; situações que implicam na humanização, na segurança e no direito à cidade para todos. Em relação à AVENIDA DAS PALMEIRAS, foram solicitadas as seguintes ações:

  1. Reduzir a velocidade para 30 km/h e criar uma “área de trânsito calmo” para priorizar pedestres, ciclistas, pessoas com deficiência, escolares, idosos e mães com carrinhos de bebê.
  2. Reformar calçadas para torná-las confortáveis e acessíveis, com piso tátil, eliminação de obstáculos, arborização e correção de estreitamentos e realinhamento das esquinas, corrigindo irregularidades.
  3. Desenvolver e implantar projeto de iluminação direcionada para as calçadas, complementando a existente no canteiro central, especialmente nas áreas prejudicadas pela copa das palmeiras.
  4. Construir uma rota acessível no canteiro central, com passarela central sem obstáculos, piso tátil e áreas ajardinadas, integrada às calçadas laterais.
  5. Reformar as faixas de pedestre, elevando-as, iluminando-as e garantindo acessibilidade para deficientes visuais e outros usuários.
  6. Instalar semáforos acessíveis, com aviso sonoro e botão tátil, incluindo faixas de pedestre elevadas, especialmente no cruzamento da Avenida Comercial com a Avenida das Palmeiras, considerando a presença da Biblioteca Braille DORINA NOWILL.
  7. Revisar as vagas de estacionamento no canteiro central, especialmente agora após a retirada do tráfego de ônibus e paradas de ônibus, buscando otimização e adequação ao novo cenário.

Fig. 7: Av das Palmeiras: Pedras soltas perto da faixa de pedestres indicam falta de atenção para as necessidades da escala humana, especialmente para pessoas com deficiência.

  1. Boulevard: oportunidade para uma revitalização cidadã

Taguatinga ao celebrar seu aniversário no Dia Mundial do Meio Ambiente, a cidade poderia representar um modelo exemplar de respeito aos princípios da convivência cidadã e do zelo pelo ambiente, especialmente em sua região central, que tem papel crucial na condição de  centro metropolitano. No entanto, essa riqueza de diversidade e de oportunidades tem sido negligenciada com a insuficiência de cuidado com o espaço público.

Para a reversão desse cenário é necessário aprofundar estudos, elaborar e implantar projetos de requalificação, fiscalizar o cumprimento das normas urbanas e, sobretudo, fomentar uma cultura que valorize tanto as pessoas quanto o ambiente ao seu redor. Com a conclusão do túnel Rei Pelé  e do boulevard temos uma oportunidade única para uma revisão dos planos de urbanização e recuperação do espírito comunitário que marcou o início desta cidade. Ao combinar essas sugestões propostas, é possível criar um plano abrangente que não apenas revitalize a atividade econômica sustentável, mas também promova o desenvolvimento urbano, a qualidade de vida da comunidade e proporcione uma experiência agradável para quem frequenta a região.


[1] A vistoria buscou atender ao disposto no artigo 5º da Lei Federal nº 12.587, Política Nacional de Mobilidade Urbana, e no artigo 2º da Lei Federal no 10.257, Estatuto da Cidade, que garantem a gestão democrática e o controle social do planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana e de projetos de desenvolvimento urbano, respectivamente.

[2] Participaram o promotor de justiça, Dr. Dênio Moura, analistas periciais do MPDFT, engenheiros e arquitetos da Secretaria de Obras e da Administração Regional, incluindo o Sr. Chefe de Gabinete, Ezequias Pereira, ativistas da mobilidade ativa, do transporte coletivo, e representantes da sociedade civil de Taguatinga, particularmente da Rede Cidadã – RECITA.

[3] https://www.jusbrasil.com.br/noticias/mpdft-questiona-inversao-nas-avenidas-samdu-e-comercial-em-taguatinga/346293443

[4] https://correiodesantamaria.com.br/noticia/4826/ordem-do-detran-e-viver-e-ficar-feliz-a-50-km-por-hora

[5] Metrô DF Memória em https://metro.df.gov.br/?page_id=8123

2 comentários sobre “Boulevard de Taguatinga: do coração para as avenidas

  1. Ótimo texto! Deixo aqui algumas observações que me vieram à mente enquanto lia e que espero poder contribuir para o debate:

    1. Transformar a Avenida das Palmeiras em zona 30 (30km/h), sugerindo que a AvenidaComercial vá para 40 km pode tornar o trânsito confuso para o motorista. Ele vem numa via de 40km, do nada entra em uma de 30 km e depois segue para o Pistão, por exemplo, que é 60 km, se for para a EPTG aí já é 80km. Não seria mais interessante sugerir uma padronização de todo um perímetro?
    2. Arborização na Avenida das Palmeiras: como seria feita? Se colocar nas calçadas laterais será um obstáculo de qualquer forma. No canteiro central não há espaço. Se tirar as vagas de carro dali qual seria a alternativa para o motorista?
    3. Tem muito comércio e serviços ao redor da Avenida das Palmeiras, tirar as vagas do canteiro central sem dar opção vai virar um caos. Opção aqui leia-se: transporte público;
    4. Rota acessível no canteiro central: mesmo raciocínio da arborização;
    5. Como fazer a ligação entre Samdu e Comercial? Para algumas pessoas, andar 400 m em declive, mesmo tendo calçadas padronizadas, acessíveis e inclusivas é inviável;
    6. Concordo: comerciantes, em geral, realmente não investem nas lojas físicas. Querem permanecer com o mesmo modelo de negócios de 30 anos atrás, não fazem as calçadas, marquises e fachadas; as lojas ficam pouco atrativas e o movimento cai. Soma-se a isso a facilidade de se fazer compras online, quem tem loja física acaba dando mais atenção para a internet, para as vendas feitas por site ou whatsapp enquanto a loja fica “parada no tempo”.

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  2. Obrigada Amanda. Suas observações são pertinentes. A implantação da área de transito calmo exige muito mais do que mudar a sinalização sobre velocidade máxima. É necessário definir um perímetro e dar uma repaginada no design urbano, ou mesmo no formato das vias (evitar linearidades). Talvez basta intervenções simples, mas que saibam comunicar bem com as pessoas. Isto em vista de uma mudança cultural, e aqui, entra também nosso trabalho em rede.

    O centro de Taguatinga é um desafio para uma sociedade e um governo algo acomodados. No entanto, se conseguirmos avançar, o impacto será fabuloso. Essa região é o epicentro de uma metrópole de 1,5 milhões de pessoas que sobrevivem movimentando-se.

    Além disso, o boulevard de Taguatinga está criando 3 novidades no cenário urbano dessa metrópole: 1- o padrão acessível e estético da faixa livre e 2- a decisão política de fazer valer o direito coletivo e não o uso individual da calçada e 3- o financiamento público para construir as calçadas, identificando a incapacidade do privado em proporcionar qualidade funcional e estética das mesmas.

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