A crônica anunciada no Metrô/DF

Wesley Nogueira

Foto: Metrô em chamas no DF. Fonte: X/@taaatiele.

O incêndio em um vagão do Metrô/DF, ocorrido no dia 12 de janeiro, é apenas mais um triste capítulo de episódios recentes e recorrentes de interrupções da operação do sistema sobre trilhos em Brasília, em função de problemas localizados em material rodante, infraestrutura, vandalismo e/ou na tecnologia implementada, reproduzindo um quadro histórico de baixo investimento no modal por parte do Governo do Distrito Federal (GDF). Há algum tempo estamos alertando sobre esses potenciais riscos e os prejuízos para os usuários e o transporte público da capital.

Apesar das diretrizes expressas tanto na Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) como no Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal (PDTU-DF), que enfatizam a necessidade de priorização dos modais ativos e do sistema de transporte público, em detrimento do transporte individual motorizado, a orientação do GDF tem se concentrado no investimento em grandes obras dentro do sistema viário que são voltadas para a busca da utópica fluidez de automóveis, em que pese as repetidas justificativas de que o objetivo central, na verdade, seria o atendimento do transporte público, vide ações recentes na EPIG, ESPM e o Túnel de Taguatinga.

Em se tratando especificamente do metrô, essa mesma lógica invertida está claramente reproduzida. Apesar de todos os indícios de que o sistema sobre trilhos acumula uma série de problemas e de que necessita de ajustes urgentes para interromper esse ciclo vicioso de incidentes e ocorrências previsíveis, a desejada requalificação do modal é substituída por projetos que defendem prioritariamente o investimento em obras de engenharia, como a expansão da rede em Ceilândia, Samambaia e até a Asa Norte, além da abertura de novas estações, como a Onoyama e a da 104 Sul.

Como explicar que a inclusão da obra de expansão do metrô em Ceilândia é uma das prioridades do DF dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no eixo Mobilidade, com previsão de aporte de R$ 400 milhões, quando a renovação da atual frota de trens deveria estar na ordem do dia? Como justificar a manutenção da operação com trens que, em sua maioria, foram fabricados em 1992 (série 1000)? A oferta do serviço por uma parcela da frota que conta com veículos já com 32 anos de idade, vai se traduzir em garantia de confiabilidade e segurança para os usuários do sistema?

A requalificação do metrô também deveria contemplar o investimento em sistemas modernos de gestão, operação, comunicação e controle do sistema; a ampliação, valorização e capacitação do quadro técnico de empregados; a resolução da questão crônica do fornecimento de energia, inclusive apontando na perspectiva de opções de ofertas mais baratas, visando equacionar os entraves que impedem a ampliação do número de trens nas faixas de picos e a redução do headway (intervalo) entre as composições; a melhoria da acessibilidade às estações e, por fim, a ampliação da integração intermodal, principalmente entre metrô e automóveis, que hoje representa apenas 7,5% das viagens realizadas no sistema de trilhos, ao passo que a maior parte do acesso é feito por usuários que estão nas áreas lindeiras das estações e chegam caminhando.

Em um país com pouca tradição e histórico de investimento geral em infraestrutura, não estou defendendo aqui que o DF abra mão de recursos previstos no PAC (R$ 2,2 bilhões) e que será direcionado para o investimento na ampliação do nosso sistema de trilhos (R$ 400 milhões), além das outras obras previstas, como, por exemplo, a implantação do BRT Norte (R$ 1,5 bilhão). Ainda não estou jogando pedra na rua. A ressalva que faço é no sentido de que o debate de ampliação da atual rede seja obrigatoriamente precedido por mudanças estruturais no sistema, visando à sua requalificação e a posterior garantia da oferta de um serviço de transporte público de qualidade, confiável, regular e com custo menor. O incidente de hoje deve servir como um alerta importante para a necessidade de mudanças urgentes.

Em 2020, o consórcio formado pela empresa Urbi e o Metrô/SP apresentou um estudo técnico no âmbito do processo de concessão do Metrô/DF. Segundo dados do documento, o número de passageiros transportados no sistema poderia ser de até 328 mil usuários/dia, no ano de 2041, após a introdução de várias iniciativas e considerando a implantação de todas as extensões originais previstas. Sem as expansões, a demanda cairia para 301 mil passageiros/dia útil.

Ou seja, a ampliação de km de trilhos no DF teria a capacidade de ampliação do carregamento da rede em apenas mais 26 mil usuários, o que é um número relativamente baixo para um modal de alta capacidade e que exige um investimento muito maior de recursos para a sua implantação. Esse nível de demanda pode ser perfeitamente atendido pelo sistema de ônibus do transporte público coletivo, com melhor custo-benefício. Esse debate precisa ser feito sem paixões, mas pautado em dados técnicos e na conjuntura. É um equívoco, por exemplo, avançar em um processo de expansão do metrô em Ceilândia, no qual o projeto não tem nenhuma previsão de alcançar o Terminal Rodoviário do Setor O, que promoveria a integração intermodal entre ônibus-trilhos, inclusive com aqueles que têm origem em cidades de Goiás.

Informações disponibilizadas no Plano de Negócios do Metrô/DF (ano 2023) mostram que a receita tarifária com a operação do sistema representa menos de 20% do valor global e que os repasses do GDF ainda são a parcela mais representativa para a manutenção do sistema, com o maior montante sendo destinado ao pagamento de pessoal e custeio. Dados do próprio GDF indicam que o nível anual de investimento tem sofrido variações consideráveis: 2019 = R$ 17,1 milhões; 2020 = R$ 12,9 milhões; 2021 = R$ 4,5 milhões; 2022 = R$ 21,3 milhões e 2023 = R$ 2 milhões. 

O GDF sempre justifica que não há grandes margens para manobra dentro do orçamento público, quando se demanda recursos para investimento no sistema de transporte público. Nesse sentido, é imprescindível viabilizar fontes de receitas acessórias e complementares, para reinvestimento no metrô, além das atuais existentes, como a exploração de publicidade e a originada de espaços de comercialização dentro das estações. É preciso avançar em direção a projetos de captação que gerem recursos mais robustos, como a negociação para a implantação do direito de exploração de nomes nas estações, o estabelecimento de parcerias público-privadas para a implantação de empreendimentos residenciais e comerciais nas áreas do entorno das estações e a captura da mais-valia decorrente da valorização imobiliária vinculada à implantação/existência de redes estruturais de transporte público. É inconcebível, do ponto de vista da mobilidade urbana, que a rede de trilhos tenha contribuído para a valorização de imóveis em regiões como Águas Claras, Samambaia e Ceilândia, e isso não tenha se revertido em recursos para reinvestimento no sistema de transporte público.

Enfim, nesse momento é fundamental que as ações possam ser direcionadas para a requalificação do Metrô/DF, visando interromper esse processo de degradação do sistema e afastar a possibilidade de qualquer risco ao usuário do modal. Os esforços deveriam estar concentrados nessas tarefas, nesse primeiro momento, e não na condução de projetos como a abertura de novas estações, que pouco irão representar de incremento à demanda, mas com custo significativo, e também na contratação de estudos para a possível implantação de uma linha 2, destacada no Plano de Negócios 2024, para a ligação entre o Plano Piloto e Santa Maria, que já é atendida pelo BRT.

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Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel” e é membro titular do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF e do Conselho de Trânsito do Distrito Federal.

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