Na cidade planejada para o automóvel, mudanças no modelo ainda são um sonho distante

Texto: Wesley Ferro | Fotos: Uirá Lourenço

Quando cheguei em Brasília, em 2003, lembro que o protagonismo dos automóveis era uma das principais referências dentro da cidade. Naquele ano, segundo o IBGE, a população do Distrito Federal era estimada em 2.257.522 habitantes, enquanto que a frota tinha alcançado a marca de 732 mil veículos, com os automóveis representando 78,7% deste total e as motocicletas equivalendo a 6,9% desse conjunto, conforme dados do Ministério dos Transportes (MT). Naquele tempo, com exceção de horários e locais bem específicos, os congestionamentos e a falta de fluidez no sistema viário ainda não eram temas de grande relevância dentro da agenda política, em que pese as preocupações com a evolução contínua do crescimento da frota.

Passados mais de vinte anos, a população do DF se aproxima dos 3 milhões de pessoas (mais precisamente 2.817.381, segundo dados do Censo/2022 do IBGE). Por outro lado, no ano passado a sua frota já ultrapassou os 2 milhões de veículos (2.083.081, ainda de acordo com o MT), mas com uma pequena mudança na configuração, uma vez que as motocicletas agora representam 13,1% do total, enquanto que os automóveis correspondem a 67,6%. Para se ter ideia da evolução dos números, durante esse período compreendido entre 2003 e 2023, enquanto a população do Distrito Federal cresceu 24,8%, a frota de veículos, por sua vez, teve um aumento expressivo de 184% e isso deveria ser motivo de muita preocupação.

Grande fluxo de carros na EPTG, em Brasília.

E ao contrário do que orientam a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) e o Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do DF (PDTU), que recomendam a utilização de instrumentos para a redução do protagonismo dos automóveis dentro do espaço urbano, ao mesmo tempo em que se priorizam os modais ativos de circulação e o sistema de transporte público, o remédio amargo e ineficaz utilizado no DF ainda continua ser o da busca implacável por algo que é utópico: a manutenção da  fluidez de automóveis no sistema viário. E tome viadutos, complexos rodoviários, túnel e alargamento de vias.

Assim como ocorre em várias partes do mundo, quando a gestão pública ensaia movimentos para repensar o modelo de mobilidade urbana baseado em carros, aqui no DF, as manifestações em contraposição às mudanças e a reprodução do ideal rodoviarista também estão muito arraigadas dentro de segmentos representativos da sociedade. Isso ocorreu quando o Governo do Distrito Federal (GDF) apresentou o Projeto Zona Verde com a proposta da cobrança pelo uso do estacionamento em vias públicas, inclusive nas áreas internas das Superquadras do Plano Piloto, de onde vieram as reações mais virulentas de moradores, a partir do entendimento equivocado de que as vagas existentes no viário são apêndices de seus imóveis.

Há um ano integro o Conselho de Trânsito do DF (Contrandife) e ali, na condição de conselheiro, consigo acompanhar de perto e ter uma dimensão do quanto é forte a ligação das pessoas com os seus automóveis. Nos processos de cometimento de infrações como, por exemplo, dirigir sob a influência de álcool (Artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro) ou recusa na realização de teste (Artigo 165-A), em que pese o valor representativo da multa fixado para esses casos (R$ 2.934,70), é a aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir por doze meses que mais assombra e aterroriza os condutores infratores.

Resta a impressão de que ter o direito de dirigir suspenso, temporariamente, seria a mesma coisa que ficar sem oxigênio para respirar ou como se a vida fosse sofrer um impacto violento pela simples aplicação correta da lei. E aí, para se evitar ou postergar a aplicação das penalidades, se recorre aos mais variados argumentos dentro do processo para não reconhecer o erro: é professor combatendo o uso pedagógico que a penalidade tem para o aprendizado e a mudança de comportamento; é profissional da saúde minimizando os riscos e a gravidade da combinação entre álcool e direção à vida; é advogado se recusando a admitir o princípio básico de que o direito pressupõe o estabelecimento de normas de conduta que precisam ser atendidas para a harmonia dentro da sociedade; é jornalista alinhando argumentos e fatos que não se sustentam em virtude da robustez de provas materiais contidas nos autos e por aí vai.

Recentemente, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) impetrou uma Ação Civil Pública destacando a importância da redução da velocidade no Eixo Rodoviário (Eixão) de 80 km/h para 60 km/h, como parte integrante da estratégia para a “implementação de soluções que garantam mobilidade, segurança e acessibilidade a pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência na travessia”. A divulgação da iniciativa incendiou a cidade e logo surgiram as manifestações de segmentos da sociedade, muitos a apoiando, mas também com boa parcela se posicionando contrária à mudança sob o pretenso argumento de que isso geraria mais congestionamentos, reduziria a fluidez e aumentaria os tempos de viagens, questões já devidamente refutadas por especialistas da área da engenharia de tráfego.

Alta velocidade no Eixão, via expressa que corta Brasília.

Não há dúvida de que reduzir as velocidades nas vias urbanas do DF é imprescindível para o início de uma mudança no nosso modelo de mobilidade e esse debate precisa ser aprofundado, aproveitando esse fato gerado através da iniciativa do MPDFT, além de outras alterações que precisam ser feitas e que estão alinhadas com todas as políticas com ênfase na construção de cidades mais saudáveis e sustentáveis, como a priorização da circulação a pé e por bicicleta e dos sistemas de transporte público coletivo. Não se trata de demonizar o automóvel, mas priorizar as pessoas é a única garantia para a redução das externalidades negativas produzidas com o nosso atual modelo de desenvolvimento baseado em carros.

A implementação da política de mobilidade urbana sustentável em um território pressupõe o enfrentamento do status quo e o rompimento com os modelos históricos baseados na priorização de carros. Adotar um modelo de gestão que rompa com esses paradigmas, via de regra, pode ser considerado como um suicídio político para gestores públicos que assumem mandatos já mirando o projeto de reeleição. Nesse sentido, sem nenhuma ameaça à democracia e ao processo participativo, e manifestando uma posição exclusivamente pessoal, avalio ser muito complicado o instituto da reeleição para cargos do executivo, uma vez que qualquer iniciativa de mudança é bloqueada a partir das primeiras reações contrárias de setores da sociedade, quase sempre daqueles com mais renda, e os bons projetos, que poderiam gerar capital político a ser apropriado por gestores e ganhos para a cidade, acabam sendo arquivados.

De qualquer forma, as mudanças precisam começar e o caminho é mesmo no território.  

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Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel” e é membro titular do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF e do Conselho de Trânsito do Distrito Federal.

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