Cristina Inoue e Hugo López
Na manhã seguinte à primeira parte da audiência pública, decorrente de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público (MPDFT)1, com apoio da Rede Urbanidade, saindo de casa, vi uma mãe numa cadeira de rodas elétrica, puxando um tipo de carrinho onde estava sua filha (ou filho), provavelmente a caminho da escola. Esta visão tão singular, na hora, trouxe à minha cabeça o debate da noite anterior sobre o Eixão e a necessidade de uma série de intervenções, a primeira sendo a diminuição da velocidade máxima permitida. Será justo que o conforto de quem dirige continue pesando mais que a segurança e dignidade de quem enfrenta tantas barreiras todos os dias?
Atualmente, estamos morando em Arnhem, nos Países Baixos, e esta cena foi em frente à nossa casa, onde há uma ciclovia de mão-dupla, uma avenida (de duas pistas) para carros (60 km/h), com um canteiro no meio. Logo de início, o desenho da rua evidencia uma preocupação estrutural com pedestres e outros modos ativos de mobilidade. Mas trata-se de algo que vai além da mobilidade: é sobre equidade no uso do espaço urbano. Há ainda calçadas, um canal onde há patos, gansos e cisnes, outra ciclovia e uma pista de baixa velocidade (30km/h). Trata-se de um espaço desenhado a partir do princípio da equidade, onde todos têm o direito de mover-se com segurança, da mãe na cadeira de rodas ao dono do Porsche nosso vizinho, além de usuários de bicicletas, outros pedestres, patos, gansos e gatos…
Caminho em frente de casa. Arnhem, Holanda. Foto: Cristina Inoue.
Este pequeno exemplo pode parecer específico demais (alguns vão pensar “Brasília não é a Holanda”) e não se aplicar à discussão sobre o Eixão, ou a DF 001, uma rodovia de seis pistas, ladeada pelos Eixinhos, W e L, duas avenidas de quatro pistas, uma de cada lado (Oeste e Leste). Todas essas pistas, dez no total, atravessam o Plano Piloto no sentido Norte e Sul, dividindo os lados Leste e Oeste da cidade. A velocidade máxima permitida é 80 km/h e 60 km/h respectivamente. Uma metáfora contundente para descrever o Eixão é a do muro, considerando que a travessia de pedestres no sentido Leste-Oeste (e no Oeste-Leste) é sempre um risco, seja correndo por cima entre os carros, seja pelas passarelas subterrâneas escuras. No sentido Norte-Sul, é praticamente impossível para pedestres percorrerem a cidade, caminhando pelos Eixos. Ciclistas, cadeirantes, animais de estimação e outros seres vivos não têm nenhum espaço destinado a eles e nem apropriado por eles (no sentido de se apropriar do espaço pelo uso, como são, por exemplo, os caminhos de rato (caminhos demarcados nos canteiros pela passagem de pedestres e ciclistas). É praticamente impossível para pedestres, ciclistas, cadeirantes, animais de estimação estarem neste espaço sem arriscar sua integridade física e até mesmo a própria vida. O espaço ocupado pelo Eixão e Eixinhos evidencia a distribuição injusta do espaço público, a falta de reconhecimento dos direitos à mobilidade e do direito à cidade.
Eixão: ambiente hostil para pedestres e ciclistas. Foto: Uirá Lourenço.
O contraste entre a mãe cadeirante atravessando a avenida e o espaço ocupado pelo Eixão e Eixinhos mostra a diferença entre um espaço público desenhado a partir de princípios de justiça e direitos e outro priorizado para automóveis. Ilustra, ainda, como um exemplo pequeno pode, sim, ajudar a refletir sobre espaço público, mobilidade e justiça.
Justiça Territorial: para quem é a cidade?
Quando falamos de transporte, calçadas e ciclovias, costumamos pensar em números, fluxos e infraestrutura. Mas no fundo, trata-se de algo mais profundo: todos tem o direito de se mover com facilidade. Quem é lembrado nos planos urbanos e quem é sistematicamente/constantemente esquecido? É aí que entra o conceito de Justiça Territorial.
Talvez caiba aqui uma pequena pausa para apresentar a noção de “Justiça Territorial”. Irmão de tantas outras noções-lutas como a justiça climática, justiça ambiental, e a justiça racial, esse termo se desenvolve junto com um “spatial turn” nas ciências sociais e é popularizado principalmente a partir dos anos 1970 com David Harvey e Edward Soja, em seu livro “Seeking Spatial Justice”. É possível pensar Justiça Territorial como uma versão de justiça social pensada por quem pensa o espaço urbano, e desenvolvida no campo do planejamento e desenho urbanos. Fazendo um grande pulo e chegando a uma aplicação nos dias hoje, a noção tem sido cada vez mais usada em políticas e projetos de transições urbanas para sustentabilidade, e é um instrumento/uma lente de governança para atentar para valores como equidade, respeito, cuidado através de um triângulo com três dimensões indissociáveis e que se apoiam mutuamente: de reconhecimento, processual e distributiva. Logo…
Mais do que distribuir ciclovias ou ônibus de forma “igual” pela cidade, trata-se de olhar para o território não como algo natural, mas com gestos e intenções. A cidade não é neutra – ela carrega marcas de desigualdades históricas, de quem foi incluído nos processos de decisão e de quem ficou à margem. Nesse contexto, a Justiça Territorial propõe que enfrentemos essas desigualdades por meio de três dimensões indissociáveis e interligadas:
- Reconhecimento: Primeiro, é preciso poder ver e valorizar os modos de vida, necessidades e aspirações de quem tem sido historicamente marginalizado. Isso vai dos povos indígenas a cadeirantes e ciclistas que enfrentam diariamente um espaço urbano hostil.
- Processual: Justiça também é poder se engajar nas decisões que afetam nosso cotidiano e sentir-se contemplado. Nessa dimensão, uma ampla gama de partes interessadas tem voz ativa na elaboração de políticas, regulamentações e planos de transições, garantindo que os procedimentos de tomada de decisão sejam abertos, responsáveis e considerem diversas perspectivas. Quando uma nova avenida é planejada, ou quando uma linha de ônibus é cortada, quem foi ouvido? Quem estava na mesa e quem só ficou sabendo quando já era tarde?
- Distributiva: Por fim, na dimensão distributiva é onde reconhecimento e processos justos se materializam em acesso real às oportunidades da cidade, seja por transporte público, mobilidade ativa ou serviços básicos. Não basta que existam ciclovias e acessibilidade nos centros, elas precisam chegar às periferias, com segurança, continuidade e qualidade.
Pensar a mobilidade a partir da justiça territorial é superar a lógica de que as soluções se resumem a tecnologia ou eficiência. É reconhecer que a forma como desenhamos ruas e sistemas de transporte expressa escolhas políticas sobre quem importa e quem pode circular com liberdade, segurança e dignidade.
Políticas públicas
À lente da Justiça Territorial, podemos analisar e comparar Brasília e Holanda. Será que a mãe cadeirante teria as mesmas dificuldades para locomoção numa rua em Arnhem? Como será que a Holanda chegou a tal desenho atualmente, sendo exemplo para tantas outras cidades? O exemplo da Holanda não é um exemplo extraordinário, como se usaria de contra-argumento. “É um país ‘desenvolvido’ do ‘norte global’!”, ou pior, poder-se-ia supor que é um país com viés socialista em sua economia política – argumento infundado se visto pela perspectiva que é um dos precursores do modelo de financeirização e vem elegendo governos neoliberais pelas últimas décadas. Acontece que a Holanda é um exemplo de longa trajetória de governança para mais equidade, segurança, e até eficiência na questão de mobilidade urbana. Porém uma eficiência que prioriza o deslocamento de “mobilidades ativas”, ou seja, o deslocamento feito com o próprio corpo, como caminhar ou pedalar.
Assim como a gestão da água na Holanda nasceu de uma tragédia – a grande inundação de 1953 -, a transformação na mobilidade urbana também foi impulsionada por traumas coletivos e gerou políticas públicas que priorizam o cuidado, a segurança e a equidade. No final dos anos 1960 e início dos 1970, em decorrência da crescente prioridade dada a carros nos centros urbanos, o aumento no número de mortes no trânsito, especialmente de crianças atropeladas em áreas urbanas, provocou uma crescente revolta social. O movimento “Stop de Kindermoord” (Parem o assassinato de crianças) pressionou o governo por mudanças. Aliado a isso, a crise do petróleo de 1973 reforçou essa tendência, ao limitar o uso de carros e incentivar formas de mobilidade alternativas. Medidas simbólicas como os “Domingos sem carro”, quando o anel viário de Amsterdam foi fechado para carros e ocupado por ciclistas e famílias, ajudaram a vislumbrar e consolidar uma nova experiência de espaço urbano. Não foi um processo simples ou livre de resistência, mas se tornou um compromisso coletivo com uma mobilidade mais segura, saudável e equitativa que ganhou força e moldou o que hoje é um grande exemplo de foco nas mobilidades ativas e conexão com transporte público, se tornando referência mundial. A cultura ciclística holandesa não é um traço natural ou espontâneo. Ela foi construída historicamente através de lutas sociais, crises e decisões políticas. O mesmo pode ser dito de várias cidades brasileiras que também têm tradição do uso da bicicleta, porém carecem de infraestrutura e políticas que a sustentem. Assim como na Holanda, em Brasília as transformações são possíveis, mesmo em contextos altamente motorizados.
Brasília, justiça territorial e o Eixão da vida.
O mesmo pode acontecer em Brasília, onde há uma história de mortes no trânsito, como acontecia na Holanda, onde, porém, também existe uma história de uso de bicicleta, mobilidade ativa e mobilização social. Por isso, é preciso continuar ocupando o espaço público, reivindicar políticas justas, e exigir que os mais vulneráveis estejam no centro das decisões.
Diminuir a velocidade máxima permitida para 60km/hora no Eixão, e mudanças mais profundas, como sugeridas no livro As Travessias do Eixão, de torná-lo uma avenida, a Avenida Lúcio Costa, com canteiro central, ciclovia, árvores e semáforos (sugerida pelo arquiteto Antônio Eustáquio Santos na audiência pública judicial) é perfeitamente possível, não custa caro e demanda coragem e uma opção pela justiça territorial-espacial. Nessa opção, a velocidade máxima permitida poderia ser 50km/h, praticamente zerando riscos de acidentes graves. Uma mudança mais ousada seria torná-lo um Parque, que corre a cidade de norte a sul, proposta por Uirá Lourenço (ativista da mobilidade e criador do blog Brasília para Pessoas). Além de contemplar a justiça territorial e o direito à cidade, colocaria Brasília na vanguarda do Século XXI.
Para isso, é preciso continuar ocupando o espaço público de maneira alternativas ao mesmo tempo que pressionamos os governos para maior ênfase no cuidado aos mais vulneráveis na mobilidade urbana. O reconhecimento do risco à saúde, à mobilidade, à integridade física dos mais vulneráveis pode gerar protestos, mas também mudanças em políticas públicas – não sem oposição. É preciso entender, finalmente, que essas mudanças não são pontuais, mas uma evidência de mudança de valores e prioridades, que se manifestam no espaço público de mobilidade, porém, vão além do espaço, tendo a ver com direito à cidade, sustentabilidade e direito à vida. Quando os mais vulneráveis são priorizados, todos se beneficiam.
Justiça territorial não é só teoria: é uma das bases para planejar uma cidade com gestos que respeitem e cuidem dos seus mais vulneráveis.
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1 Em março (dias 20 e 21) foi realizada audiência pública decorrente de Ação Civil Pública, proposta pelo Ministério Público (MPDFT), com apoio da Rede Urbanidade. São exigidas soluções por parte do Governo do Distrito Federal ‘que garantam mobilidade, segurança e acessibilidade a pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência na travessia do Eixão e dos Eixinhos’.
Cristina Y. A. Inoue – Professora Associada do Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília / Departamento de Geografia, Planejamento e Meio Ambiente da Radboud University (Holanda).
Hugo López – Doutorando em Estudos Urbanos e Planejamento, Universidade de Sheffield, Inglaterra. Mestre em Urbanismo, TU Delft (Holanda). Bacharel em Arquitetura e Urbanismo, FAU/UFRJ.

